"É só estrangeiros e a malta das obras": o verão na Comporta

Começou em Lisboa, a comer arroz de marisco no ÀCosta, do chef Olivier da Costa, depois subiu para a Nazaré, onde provou a gastronomia local do Taberna D’Adélia e ainda foi abordado nas ruas de Coimbra por um agente da PSP — para uma selfie. No fim da semana, partilhou no Instagram as fotografias em pontos turísticos também em Sintra e no Porto. “Um lugar lindo a explorar”, confessou Mick Jagger, que circulou por Portugal este verão a distribuir simpatia e simplicidade. Uma amostra do quanto o país está na moda entre os famosos estrangeiros, mas também um retrato que contrasta com aquilo que os chamados nomes A-list de Hollywood (e não só) têm procurado. É a Comporta que tem recebido o maior fluxo de celebridades internacionais por metro quadrado: desde julho já viu nomes como os atores Robbie Williams e Zac Efron, a princesa Eugenie ou o piloto de fórmula 1 Max Verstappen, que fez uma selfie em Pego com o líder parlamentar do CDS-PP, Paulo Núncio. Um apelo que não parece só turístico, já que muitas destas figuras públicas escolhem investir no mercado imobiliário da região.
A natureza, o acesso à praia, a privacidade e a proximidade da capital que a Comporta oferece parece atrair os famosos internacionais, que há pelo menos uma década têm ajudado a construir os Hamptons à portuguesa. Um boom que foi também potencializado pela mudança de Madonna para Lisboa em 2017. “A energia de Portugal é tão inspiradora. Sinto-me extremamente criativa e viva aqui e estou ansiosa por trabalhar no meu filme LOVED e fazer novas canções. Este será o próximo capítulo no meu livro”, escreveu a cantora nas redes sociais na altura, quando decidiu viver no Pestana Palace até mudar-se para o Palácio do Ramalhete, na rua das Janelas Verdes. No mesmo ano também a tenista Maria Sharapova descobria os encantos de Lisboa. “Sim. Há esta delícia portuguesa chamada pastel de nata e só levei 12 horas a descobri-la. Talvez tenha comido mais do que um”, escreveu nas redes sociais, onde também partilhou fotografias a explorar o Chiado e a Baixa.
A “rainha da Pop” deixou o país em 2020. Contudo, ainda antes de desistir da vida em Lisboa, Madonna falava à Vogue Itália sobre o seu amor pela Comporta. “Sempre que o meu filho não tem jogo de futebol ao domingo, é dia de aventura e vamos à procura de um sítio para andar a cavalo”, disse a cantora, que praticava equitação na propriedade de um amigo. Numa visita a Portugal em abril de 2025, Madonna voltou a destacar as belezas da região: “Uma ida ao meu dentista favorito em Lisboa, o Dr. Miguel Stanley, significa que posso rever a minha família e amigos músicos e visitar a praia mais bonita do Mundo: a Comporta”, escreveu, no Instagram, ao mostrar-se com o namorado, o modelo Akeem Morris. Madonna terá pisado pela primeira vez as areias brancas da Comporta em maio de 2017, um destino que até então era frequentado por nomes relevantes, incluindo celebridades nacionais que davam cartas lá fora, como Cristiano Ronaldo e José Mourinho, mas não só.
"É muito normal ver aqui os famosos, porque isto é como um refúgio para eles", conta-nos Erica, vendedora numa loja de biquínis no centro da Comporta. "Antes não havia muita gente, eram só os locais. E nós não queremos saber dos famosos."
Os famosos circulam quase indetetáveis pelas pequenas ruas do centro da Comporta, entre as lojas com peças de roupas, artes e cerâmicas locais. Erica diz que já viu, por exemplo, o jogador da Seleção Nacional. “É muito normal ver aqui os famosos, porque isto é como um refúgio para eles“, diz a vendedora numa loja de biquínis. “Antes não havia muita gente, eram só os locais. E nós não queremos saber dos famosos“, ri-se a jovem de 19 anos, que cresceu na Comporta. “Vem muitas vezes o Cristiano Ronaldo. Às vezes com seguranças. No ano em que ele esteve cá mais, em 2019, andava com seguranças e sabia-se sempre por onde é que ele andava, e isso fica um bocadinho chato para ele”. Entretanto, o comportamento é diferente no caso dos nomes internacionais. “Quando são famosos estrangeiros é raro ver seguranças“, destaca Beatriz, que trabalha na mesma loja. “Portam-se como pessoas ‘normais’. Não é nada como nós pensamos. São pessoas simples”, diz a jovem de 20 anos, que depois de terminar os estudos em Lisboa pretende continuar a viver entre a cidade grande e a Comporta.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
Débora, que trabalha noutra loja do centro da vila, também já viu famosos a circularem pela Comporta. “A Kristen Stewart esteve aqui a jantar, foi um dia bem calmo à noite, porque não havia quase ninguém. Só estava ela e a mulher. Passou de cabeça baixa direto ao lugar onde queria. São muito discretos“, diz a lojista de 29 anos, que vive há 20 na Comporta. Para Débora o aumento no movimento é importante para gerar empregos: “A maioria dos meus amigos trabalha no setor do turismo”, destaca.
Contudo, as jovens reconhecem que o estilo de vida para os residentes não acompanha o mesmo ritmo de evolução que o apelo internacional do turismo de luxo. “Não dá para ir às compras do mês aqui. Tem que ser em Alcácer ou Grândola, num supermercado grande. Aqui só tem três supermercados, então os preços são muito altos“, diz Beatriz, que se queixa também dos acessos à vila. “Agora já tenho carta, mas antes não tinha. Venho de Lisboa e só há um autocarro que faz ligação entre Alcácer e Tróia. Quem vem do barco de Setúbal para cá só tem um autocarro pela manhã e um à tarde, que passa em Tróia e pela Comporta”, diz. Érica concorda: “Há pessoas que ficam lá durante uma tarde inteira porque não têm como voltar para casa. Ainda são 16 quilómetros, não dá para vir a pé”. Já Débora considera que a maior dificuldade está nos preços das casas. “É preciso casas que as pessoas consigam alugar. Não é fácil comprar uma casa aqui, mesmo quem quer ter raiz cá, é difícil. Precisamos não só de casas para o turismo, mas para quem quer trabalhar e viver aqui, e também trazer as suas famílias.”
São 15 horas de uma segunda-feira e o estacionamento que dá acesso à praia da Comporta está completamente lotado. No caminho até o areal veem-se muitas autocaravanas estacionadas e ouve-se falar espanhol, francês e inglês. Um grande outdoor diz “Welcome to paradise“. Na passadeira de madeira que invade a areia e leva os turistas até mais perto do mar azul, encontrámos Jessé Saraiva e as suas duas caixas de bolas de Berlim que pesam cerca de 15kg cada. “Ontem fiz 8 km a caminhar na areia entre as praias da Comporta, Carvalhal e Pego”. O primeiro verão em que trabalhou como vendedor de bolas de Berlim foi em 2021 e desde então vem de Lisboa todas as temporadas. O irmão vende as iguarias na Comporta há nove anos. E quem compra? “Franceses, ingleses, alemães, espanhóis… Vendemos muitas bolinhas de chocolate”, conta Jessé, que vende a 2,5 euros cada bola. “A Comporta é uma das melhores praias para trabalhar. Num dia bom vendemos a metade mais um tanto”, brinca. “Dá para vender 800 bolas num dia”. Um movimento que não se via há 15 ou 20 anos.




▲ Jessé vende bolas de Berlim entre a praia da Comporta e do Carvalhal todos os verões há quatro anos
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
A menos de dois quilómetros da entrada principal da praia e com acesso direto ao areal pelas dunas está a Herdade da Comporta. Ocupando cerca de 12.500 hectares, aquela que durante muito tempo foi considerada a maior propriedade privada do país foi comprada pela família Espírito Santo em 1955. A região passou então a ser o destino de férias de verão dos herdeiros do GES durante décadas, incluindo Ricardo Salgado. Em meados de agosto de 2010, os gestores da Herdade começaram a organizar uma festa de verão, o “Música na Comporta”. “Está a ser uma noite extraordinária, acima das nossas expetativas. É o primeiro grande evento que realizamos aqui na Comporta no verão e espero que seja um grande sucesso e que se venha a repetir”, disse Manuel Fernando Espírito Santo, primo do ex-líder do BES, numa reportagem sobre o evento. Na mesma noite a atriz Ana Brito e Cunha divertia-se nos concertos e celebrava a realização do evento: “Nunca acontece nada aqui! Realmente é uma novidade e fiquei muito contente”, disse. “Está um mini concerto num ponto muito maior do que muitos concertos em que já fui”, rematou a atriz.
Cristina Toscano Rico, prima de Ricardo Salgado, teve de justificar as suas declarações à revista Expresso. "É como brincar aos pobrezinhos", disse, ao falar sobre o estilo de vida simples, "no estado mais puro".
A festa efetivamente voltou a acontecer. Em 2011 o administrador da Herdade da Comporta, Carlos Beirão da Veiga, destacava à revista Caras que “a Comporta é família e amigos, e todos são bem-vindos, por isso, decidimos voltar a organizar esta festa. Para além do ambiente familiar – a festa foi preparada pelos meus primos Mello Breyner e pelo Frederico da Cunha – este é o tipo de eventos que ajuda a colocar a Comporta e toda esta bela região do litoral alentejano no mapa. É a natureza, mas principalmente as pessoas que fazem da Comporta um local mágico“. A revista social destaca na manchete a frase: “Família Espírito Santo celebra o verão em festa na Comporta”. Dois anos depois, na mesma publicação, Cristina Toscano Rico, outra prima de Salgado, teve de justificar as suas declarações à revista Expresso. “É como brincar aos pobrezinhos”, disse, ao falar sobre o estilo de vida simples, “no estado mais puro”. Depois da polémica, Cristina assumiu que foi “infeliz” na afirmação e pediu desculpas “a todos a quem ofendi inadvertidamente. Lamento ainda pela polémica em que envolvi a minha família de forma escusada e involuntária.” Curiosamente um ano depois a família já não teria o mesmo à vontade no destino de férias. Em agosto de 2014 começou a queda do BES, com o processo da venda da Comporta a decorrer ao longo dos cinco anos seguintes. A Vanguard Properties e a Amorim Luxury concluiram o processo em 2019.
Os vizinhos da Fashion Clinic e do JNcQUOI no CarvalhalNa rua principal do centro do Carvalhal, onde fica a farmácia, o mini mercado, o restaurante, a peixaria e a papelaria, os moradores bebem café e compram o jornal diante da montra com peças Dolce & Gabbana da Fashion Clinic. A loja tem um segurança a guardar a porta de vidro, que dá para um contentor de lixo na calçada. Do outro lado da rua, populares que vivem no Carvalhal há 27 anos acreditam que a presença dos empreendimentos luxuosos “é muito boa, desde que não se deixe morrer o local”. Dentro do mercado ouvimos que o verão é tempo de “muito trabalho”, e que por cá circulam muitos estrangeiros vindos de França e Espanha, que “compram de tudo”. Entre os locais, há também quem afirme que não dá entrevistas porque quer continuar a “dar-se bem com os vizinhos”.
Já Francisco Matias, de 77 anos, nascido e criado na aldeia, fala abertamente sobre as mudanças na região. “Aqui no verão é só estrangeiros e a malta das obras“, diz o homem, entre um aceno a um vizinho que passa na calçada e outro que para o carro na rua vazia e baixa o vidro para cumprimentar. Dono de uma peixaria e um armazém, conta com orgulho que serviu por 24 meses no “Vietname português”, na Guiné Bissau. Agora, fala com alguma preocupação sobre as mudanças na terra que o viu crescer. “É onde mais se constrói em Portugal. É preciso buscar pessoas até Torres Vedras, porque os construtores cá estão sempre ocupados”, diz, afirmando que pouco a pouco os comércios da rua estão a ser vendidos aos grandes grupos. “O verão é bom”, afirma, completando depois: “Mas era melhor antes”.





Em 2024 a Amorim Luxury abriu o JNcQUOI Deli bem ao lado da Fashion Clinic, na mesma “avenida” do Carvalhal. Um ano antes o grupo já tinha aberto o Beach Village na Praia do Pego, onde o aluguer de duas espreguiçadeiras e um guarda-sol pode custar 70 euros. Apesar do acesso à areia ser permitido a todos (depois da via ser reaberta em junho, como resultado de uma providência cautelar interposta pela Vanguard Properties e a Amorim Luxury), há placas em redor do restaurante que alertam para não se ultrapassar. Aqui há muitos funcionários prontos para atender os clientes, e que assumem que o verão “é bom”, mas melhor ainda “é para os turistas”.
O bar e restaurante são a semente do que foi anunciado há poucos dias, o JNcQUOI Comporta, um investimento de 680 milhões de euros, de acordo com o WWD. O complexo com 164 hectares prevê 34 pavilhões de hotéis e 64 vilas projetadas pelo arquiteto belga Vincent Van Duysen (nome por trás da Casa M, em Melides), quatro restaurantes, uma unidade da Fashion Clinic além de bar, discoteca, loja de vinhos, ginásio, beach club e acesso à praia. De acordo com o jornal ECO, as primeiras 24 casas anunciadas no início do ano já foram vendidas, a 13 mil e 500 euros o metro quadrado. Os clientes são portugueses, mas também estrangeiros residentes no País. A previsão é abrir portas do primeiro projeto hoteleiro da Amorim Luxury dentro de dois anos.


▲ Na Praia do Pego o JNcQUOI beach village tem placas nos arredores a dizer "não ultrapassar" e camas para aluguer no areal
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
Para Manuela Lemos Pinto, managing director da imobiliária John Taylor, que comercializa casas de luxo na região, a freguesia mais valorizada atualmente é o Carvalhal. “O que gostam na Comporta é a autenticidade. É uma zona bonita, perto da praia, uma reserva natural e não tem prédios. Sentem-se num sítio muito especial e sem a pressão da construção; não se constrói em altura. Além disso está a uma hora do aeroporto de Lisboa, num país europeu”, diz a responsável pela imobiliária, que recebe clientes portugueses mas, na sua maioria, estrangeiros.”Toda a zona da Comporta é essencialmente uma casa de segunda habitação, quer para portugueses, quer para estrangeiros. Alguns estrangeiros, ou mesmo portugueses, começam a dizer que têm a intenção de se mudar para aqui, mas “mudar” significa viver aqui no máximo seis meses”, explica, sobre um mercado que está em crescimento nos últimos anos, mas não “sobreaquecido”.
No site da imobiliária estão anunciadas casas em Melides que rondam os 2 milhões de euros, enquanto no Carvalhal há propriedades a serem vendidas por quase 5 milhões. “O que as pessoas procuram são budgets completamente diferentes, vão desde um milhão de euros para cima, ou pessoas que não têm uma restrição tão grande. Existe produto para todos estes perfis”, destaca a responsável pela imobiliária, apontando algumas características muito solicitadas: “algumas pessoas querem estar ao pé da praia, outras querem privacidade total, umas querem arquitetura tradicional, outras querem arquitetura contemporânea.” Quanto ao design, no Carvalhal as casas seguem um padrão alentejano, com casas com paredes brancas e telhado de colmo. “Mesmo as novas construções nesse estilo são cómodas por dentro, não são antigas”, explica Manuela Lemos Pinto, que diz que os clientes franceses tendem a valorizar o estilo mais tradicional. “Já os alemães ou os americanos, eu diria, se fosse antes, que iriam mais para o contemporâneo, mas não tenho estado a notar isso. Temos tido mesmo pedidos de americanos para o estilo tradicional“, diz. Entretanto, há um ponto em comum: a maioria quer, pelo menos, quatro quartos.
Sobre a pressão que este mercado de luxo exerce sobre os imóveis para habitação principal, Manuela reconhece os efeitos do aumento dos preços. “Por um lado, os residentes novos que estão aqui a trabalhar não conseguem comprar casa devido aos preços. Por outro lado, quem vivia cá começa a pensar melhor em vender o bem, porque já vale muito mais dinheiro. Existe consciência de que se tem que proporcionar casas e habitação às pessoas que aqui trabalham e que aqui vivem, e não têm as condições financeiras para pagar os preços que os compradores de segunda habitação na Comporta estão a pagar.”
“O nosso luxo é o inverno”Do topo de um monte de areia, três homens observam o areal e o mar sentados em cadeiras de praia e protegidos pela sombra de um guarda-sol. “São espanhóis, franceses, americanos… Convivemos muito bem com eles“, diz-nos Juvenal, um dos senhores a observar o movimento na praia do Carvalhal. “Os famosos também andam por aí, mas passam um bocado despercebidos“, assume o morador, que diz ainda que a região fica “muito morta” fora do verão.

▲ Daniel Vilas tem uma escola de surf na praia do Carvalhal desde 2008. Já teve estrelas do cinema e jogadores de futebol entre os alunos
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
Superar a sazonalidade é um dos maiores desafios de Daniel Vilas, fundador da escola Surf in Comporta. “Nós tentamos dar o nosso melhor e trabalhar o máximo possível nesta época para depois conseguirmos sobreviver durante o inverno que realmente ainda é muito parado”, assume. Durante o verão a escola chega a receber 30 a 40 alunos por dia. Por entre as pranchas no chão e pessoas a retirar os fatos, ouvimos um homem a dizer, num inglês com sotaque, “Vais surfar amanhã? Venho às 16h”. De acordo com Daniel, os que mais procuram as aulas são os estrangeiros. “Muitos europeus, mas também já vem o mercado americano cada vez mais, e até o mercado brasileiro”. Entre os alunos ilustres, Daniel já deu aulas, por exemplo, à atriz Michelle Rodriguez, que está no elenco dos filmes Velocidade Furiosa. “Esteve aqui dois anos seguidos a fazer aulas de surf connosco. Já tivemos aqui anjos da Victoria’s Secret, jogadores de futebol. Antes deste boom, já vinha para aqui muita gente famosa, há 20 anos já trabalhei numa das casas mais exclusivas aqui da zona e lá recebemos a Charlotte do Mónaco, a Charlene, o Alberto do Mónaco“, diz Daniel, que acredita que o que as figuras públicas procuram na Comporta é a discrição. “Conseguem estar aqui na praia, passar aqui uma estrela de Hollywood, e ninguém vai abordar, ninguém vai chatear. Conseguem estar numa zona, aqui no Carvalhal, vir à praia por um acesso privado e ter uma casa com tudo do bom e do melhor e ninguém sabe que eles cá estiveram”.
A escola existe desde 2008, quando Daniel decidiu comprar uma prancha e ensinar as crianças do campo de férias organizado pela freguesia. 17 anos depois a evolução é grande. “Para nós locais é uma oportunidade. Pelo menos para mim e para muita gente que quis ficar cá, que não vendeu as suas casas. Porque nunca foi tão fácil viver aqui em termos de oportunidades de trabalho e oportunidades de negócios“, diz o dono da escola de surf. “Qual é que é a dificuldade para nós? A dificuldade para nós é que os preços aumentaram, como é óbvio, e a oferta de habitação diminuiu bastante. Os preços aumentaram muito não só na habitação, no supermercado, nos restaurantes… O estilo de vida aqui aumentou bastante. Eu antigamente saía daqui da praia, dava uma aula de manhã e a seguir vinha aqui ao O Diniz e almoçava ali umas sardinhas assadas ou um peixe grelhado e conseguia pagar, era um preço justo. Hoje em dia ir a um restaurante já começa a ser um luxo aqui nesta zona. O nosso luxo é o inverno, em que podemos ir à praia tranquilos.”
"Sinto que o progresso chegou aqui, mas podia ter chegado também à população. Está tudo a acontecer, está a haver tudo e não vejo nenhuma contrapartida para a comunidade", diz Daniel Vilas, dono de uma escola de surf no Carvalhal.
Daniel fala ainda das diferenças entre a infraestrutura focada no turismo de luxo e naquela voltada para os residentes. “Vejo muita coisa a acontecer em círculos fechados, por exemplo como resorts ou alojamentos, que têm tudo muito bom em termos desportivos e vejo pouca coisa a chegar à população. Nós não usufruímos de algumas coisas que há aqui. Nós não temos um campo de ténis aqui, no entanto há 50 campos de ténis no Carvalhal. Nós não temos um campo de padel para jogar com alguém daqui, temos que ir a Santo André, e no entanto há aqui se calhar uns 30 campos de padel na zona. Apesar de todo o luxo, nós vivemos mais ou menos com acesso às mesmas coisas que tínhamos antigamente. Quando se construiram aqui certas coisas, uma das contrapartidas era criar uma igreja para a comunidade católica do Carvalhal, e ainda não aconteceu. Sinto que o progresso chegou aqui, mas podia ter chegado também à população. Está tudo a acontecer, está a haver tudo e não vejo nenhuma contrapartida para a comunidade.”
Ainda em meados de julho falava-se sobre a possibilidade de Nicole Kidman mudar-se para Melides, onde já tem casa no empreendimento de luxo Costa Terra Golf & Ocean Club, o mesmo onde já investiram nomes fortes de Hollywood, como Sharon Stone, e da realeza britânica, como Harry e Meghan ou a princesa Eugenie. Aliás, no início de agosto a filha do príncipe André recebeu o ator Robbie Williams com a mulher e os filhos, que passaram dias de férias a jogar golfe e fazer caminhadas no meio da natureza. O empreendimento é da Discovery Land, empresa de Michael Meldman, que é sócio de George Clooney na marca de tequila CasAmigos. Os contactos em Hollywood têm funcionado para atrair celebridades para o novo projeto, que foi comprado em 2009 das mãos da Semapa, a holding da família Queiroz Pereira.




▲ O CostaTerra Club tem 300 residências e uma estrutura com campo de golfe, centro equestre, área de lazer e beach club
costaterraclub.com
No site oficial o Costa Terra afirma-se como “um refúgio familiar na Europa”. Ao longo dos mais de 290 hectares, “com mais de 30% da vegetação preservada”, estão as 300 residências (nem todas já construídas), cercadas por um serviço de luxo que inclui campo de golfe, centro equestre, beach club, horta biológica e centro de wellness. Quando em 2024 tornou-se pública a notícia de que Harry e Meghan teriam comprado uma casa no empreendimento, a imprensa britânica avançava com preços em torno dos 4,5 milhões de euros.
O empreendimento fica em frente à praia da Galé Fontaínhas, que este ano ficou em quinto lugar no ranking da Forbes de praias mais bonitas da Europa. Depois da polémica dos acessos condicionados às praias na região, uma placa que sinaliza o acesso público ao areal através do Parque de Campismo foi instalado no parque de estacionamento. Contudo, há ainda outro acesso lateral, que desemboca numa longa escadaria de madeira, um caminho que é preferido por alguns locais para aceder à praia conhecida pelo paredão de pedras laranjas.


▲ A nova placa que indica o acesso à Praia da Galé Fontaínhas por dentro do Parque de Campismo, e o acesso alternativo, por uma escadaria de madeira construída no penhasco
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
É neste mesmo parque de estacionamentos que pelas 19h acumulam-se os trabalhadores das várias construções em desenvolvimento por trás da vedação de madeira que separa a rua e o Parque de Campismo dos terrenos do Costa Terra. Ao passar em frente ao portão do condomínio, guardado por seguranças e cancelas, é possível ver ao longe as gruas — pelo menos oito estavam montadas dentro da área quando o Observador esteve no local.

▲ Nos limites do acesso ao Costa Terra é possível ver as gruas montadas para atender às muitas obras dentro do empreendimento
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
O conceito de complexo residencial onde se tem tudo, tal qual um hotel, e em que é possível fazer um dia ou uma temporada inteira dentro de casa está a ser explorado também noutro projeto anunciado recentemente, que terá conquistado Max Verstappen. De acordo com o Correio da Manhã, o piloto terá comprado um lote no Pinheirinho Comporta, que terá acesso direto à praia e campo de golfe. Acompanhado da mulher, Kelly Piquet (filha de Nelson Piquet), Verstappen já passou férias anteriormente na região com amigos da Fórmula 1, como Lando Norris e Max Fewtrell. Este ano, o piloto foi jantar ao JNcQUOI Deli Bar Comporta, onde se cruzou com o ator Zac Efron, de férias em Portugal, quando se soube que estaria a investir numa propriedade em Melides.
O Pinheirinho Comporta é um projeto turístico de luxo que se diz focado na sustentabilidade e na aproximação com a comunidade local. Contudo, o portão de acesso ao condomínio é provavelmente dos mais isolados — enquanto se chega ao Costa Terra pela mesma via que leva ao Parque de Campismo, o Pinheirinho fica a cerca de cinco minutos de carro no meio da autoestrada, e ainda é preciso entrar numa rua que leva exclusivamente ao empreendimento. Em julho, o promotor anunciou um acordo com o Six Senses e até 2028 o espaço deve oferecer 70 quartos de luxo e 58 Branded Residences, que incluem moradias e apartamentos de dois a cinco quartos. Ainda está previsto um campo de golfe de 18 buracos, centro equestre, horta biológica e acesso direto a pé à praia.
Entretanto, na aldeia de Melides pouco se sente o impacto dos hóspedes ilustres. Às 20h o mercado já está fechado e o Café Central prepara-se para encerrar. Ana Isabel Silva Maria é quem está à ao balcão do café que já era dos pais, e está aqui há 43 anos. “A perda para nós foi o Parque de Campismo“, queixa-se a residente em Melides, ao falar sobre o parque que continua em funcionamento, mas sob a administração da dona do Costa Terra desde 2021. “É com a classe média que há o consumo e o movimento de dinheiro. O multimilionário e a classe muito baixa não vem cá, não consomem. Mas temos que ser otimistas, se não a vida pára”, diz Ana Isabel, que cita as revistas que escrevem sobre Melides como a “terra dos milionários”. “Vivemos como sempre vivemos. Os multimilionários entram no Costa Terra e nós nem vemos. Não trazem nada para a aldeia.” Já outro residente com quem falámos pelas ruas, acredita que a presença só se vai notar dentro de 15 anos, quando os empreendimentos que circundam a vila estiverem cheios de casas.
Mais para baixo na rua principal, no rooftop do Melidense, restaurante que está num guia turístico de Louboutin para o Financial Times de 2016 e é citado pela Condé Nast Traveller, ouvimos pessoas a falar espanhol e francês. Entretanto os preços ainda não refletem os praticados nos beach clubs da Praia do Pego e do Carvalhal — aqui um bife com batata frita, arroz e ovo estrelado sai por 11,90 euros. Ao cair da noite o som do telejornal a dar na televisão de uma casa sai pela janela aberta e ecoa pela pequena rua vazia, que nos leva a um beco com uma escadaria, de onde se vê o hotel do designer de sapatos francês, o Vermelho. À porta, cinco ou seis carros de luxo estão estacionados. Nenhum pertence aos residentes da aldeia.




Antes dos grandes empreendimentos que dominaram a região nos últimos anos, a Comporta já recebia a atenção do mercado de luxo, mas de forma mais discreta. Em 2007 Christophe Sauvat veio para passar um fim de semana em Cascais e depois conheceu a Comporta. O designer francês mentor da La Redoute deixou para trás a vida entre a França, Bali e St. Barth, a sua conhecida marca Antik Batik e inspirou-se no estilo hippie-chic da Comporta para as novas coleções. Sauvat foi pioneiro, mas na sequência vieram outras figuras da moda e do design. Já em 2010 o New York Times escrevia que a Comporta era o “destino secreto” de férias de Christian Louboutin, que passava temporadas na casa da duquesa de Cadaval. As visitas turísticas passaram aos negócios, quando em 2017 o designer de sapatos comprou um terreno em Melides. Em 2023 abriu as portas do Vermelho Hotel, um hotel boutique de charme com 13 quartos e a cor assinatura do criador francês.
Em 2012 chegou Philippe Starck, que atualmente vive entre a Malveira da Serra e Grândola. Dos trabalhos icónicos no design de produtos (como uma parceria com a Delta), Starck também levou a sua visão arquitetónica para o Praia na Comporta, que deu lugar mais recentemente ao Caché Comporta. Numa entrevista ao Público em 2023, entretanto, reconheceu os problemas que a vinda de tantos turistas estrangeiros pode trazer à região. “Os franceses chegam com algum dinheiro, os brasileiros com muito dinheiro e os americanos trazem fortunas — isso “salvou” o país, de certa forma, o que não é mau, mas também criou grandes diferenças entre as pessoas e elas são muito visíveis“.
A vaga de designers franceses seguiu-se ao longo das duas primeiras décadas de 2000, quando Françoise Dumas se encantou pelo Carvalhal. “É tão autêntico e o Atlântico aqui é muito mais quente do que na França”, disse a publicitária de moda francesa à L’Officiel. Comprou casa em 2009, mas a paixão nasceu um pouco antes, quando visitou o designer de interiores Jacques Grange e o parceiro, Pierre Passebon, que já viviam numa casa na região há anos. Grange viu pela primeira vez os 12 quilómetros de praia num voo de Lisboa a Faro há quase 40 anos.“Era como um outro mundo. O luxo disso é a natureza que o cerca”, disse o designer à mesma publicação, na qual mostra a própria casa. Apesar de viver e trabalhar na Comporta há anos, Grange informou o Observador que “não dá entrevistas a órgãos de comunicação social nacionais”.
O designer de interiores francês assina o projeto do Atlantic Club Comporta, um empreendimento que teve um investimento de 120 milhões de euros. O design é inspirado na vila de pescadores que conheceu quando se hospedou na casa de uma amiga há décadas: uma cabana de colmo, sem eletricidade nem água, cercada pelos canais de arrozais. A amiga era Vera Iachia, a arquiteta de interiores portuguesa que alguns dizem ser “a mãe do Comporta style“, e que era membro do clã Espírito Santo.
A exploração do turismo de luxo na região ganhou maior tração há cerca de uma década. O Sublime abriu portas em 2014, pelas mãos de Gonçalo Pessoa, que iniciou a construção de uma casa em 2011, mas no meio do caminho identificou o interesse de um público estrangeiro com maior poder aquisitivo. “Visto não haver à data nenhuma oferta hoteleira de qualidade, decidimos que não fazia mais sentido continuar o projeto de uma casa, mas sim alterá-la, ainda em fase de construção, para um pequeno hotel de charme. Finalmente, abrimos portas na primavera de 2014, com 14 quartos e com um restaurante e SPA. Felizmente, correu muito bem desde o início e percebemos que existia espaço para expandir. Em 2016 inaugurámos o novo edifício principal e dez casas de dois quartos”, disse em entrevista ao Observador em 2018.
Foi neste ano que abriu também o Quinta da Comporta, o hotel de luxo do arquiteto Miguel Câncio Martins num antigo arrozal. O conceito do hotel seguiu em torno do arroz, desde a arquitetura pensada para integrar os campos e armazéns, passando pela cozinha e também pelas amenities dos quartos, com a criação da Oryza Lab. “Sempre quis um hotel independente. As pessoas vêm para cá precisamente para fugir ao mundo das marcas. Nos anos 60, Saint Tropez era mais ou menos o que a Comporta é hoje. Mykonos também já foi assim. Hoje, encontramos sempre as mesmas coisas — Chanel, Louis Vuitton, Christian Dior”, afirmou o arquiteto ao Observador em 2018. Sete anos depois, a procura pela autenticidade continua, variando entre o tradicional e contemporâneo — pelas mãos de designers renomados como Grange ou van Duysen — mas cresce ainda mais a busca pela privacidade, quer pela natureza intocada da região, quer pela vedação de madeira que se camufla na paisagem, mas que separa bem o estilo de vida dentro e fora dos muros.
observador